Se você quer humilhar alguém na igreja, você simplesmente tem que usar aquela palavra com “L” quando fala com ou sobre essa pessoa. O número de vezes que um crente chamou outro crente de legalista é incalculável. O insulto geralmente ocorre quando alguém na igreja acredita que o outro disse ou fez algo que afeta a liberdade cristã. Como seu termo irmão, “fundamentalista”, o rótulo legalista tornou-se uma espécie de insulto religioso convencional em igrejas orientadas pela graça e centradas no evangelho. Devemos ser extremamente cuidadosos ao usar essa palavra ao falar com ou sobre os outros na comunhão da igreja. Pode ser que um crente simplesmente tenha uma consciência mais fragilizada ou mais flexível do que o outro (Rm 14–15). Além disso, aqueles que amam a lei de Deus, e procuram andar cuidadosamente de acordo com ela, estarão sempre suscetíveis a serem chamados de legalistas.

Devemos nos proteger contra o descuido de uma acusação de legalismo. No entanto, devemos também reconhecer que o legalismo em variados perfis e formas está vivo e bem nas igrejas evangélicas reformadas, e isso também deve ser vigiado com a máxima determinação. A fim de evitar acusar falsamente um crente, a fim de evitar abraçar pessoalmente o legalismo e a fim de ajudar a restaurar um crente que caiu no legalismo, devemos saber como identificar esse mal recorrente tanto em suas formas doutrinárias quanto práticas.

Legalismo Doutrinário

O legalismo é, por definição, uma tentativa de acrescentar algo à obra completa de Cristo. É confiar em outra coisa senão em Cristo e em sua obra completa e permanente diante de Deus. A refutação do legalismo no Novo Testamento é primariamente uma resposta às perversões da doutrina da justificação somente pela fé. A maioria dos oponentes do Salvador eram aqueles que acreditavam que eles eram justos em si e por si mesmos, com base em seu zelo e compromisso com a lei de Deus. Os fariseus, saduceus e escribas exemplificavam, por suas palavras e ações, o legalismo doutrinário nos dias de Cristo e dos Apóstolos. Enquanto eles faziam apelos ocasionais à graça, eles se autojustificavam, truncavam e distorciam o significado bíblico da graça. O apóstolo Paulo resumiu a natureza do legalismo judaico quando escreveu: “Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10. 3,4).

Compreender a relação entre a lei e o evangelho para nossa justificação é fundamental para aprender a evitar o legalismo doutrinário. As Escrituras ensinam que somos justificados pelas obras do Salvador, não pelas nossas. O último Adão veio para fazer tudo o que o primeiro Adão deixou de fazer (Rm 5. 12-21; 1Co 15. 47-49). Cristo nasceu “sob da lei, para remir os que estavam sob da lei” (Gl 4. 4,5). Ele veio para ser nosso representante a fim de cumprir as exigências legais da aliança de Deus, a saber, prestar a Deus obediência perfeita, pessoal e contínua em nome de seu povo. Jesus mereceu perfeita justiça para todos aqueles que o Pai lhe havia dado. Nós, através da união de fé com ele, recebemos um status de justiça em virtude da justiça de Cristo imputada a nós. Em Cristo, Deus provê o que ele próprio exige. As boas obras pelas quais Deus redimiu os crentes, para que pudéssemos caminhar nelas, de modo algum contribuem para nossa justificação. Elas são apenas a evidência de que Deus nos perdoou e nos aceitou em Cristo.

No entanto, o legalismo doutrinário também pode penetrar em nossas mentes pela porta dos fundos da santificação. O apóstolo Paulo deixou claro em Gálatas 3. 1–4, que os membros da igreja na Galácia se deixaram enganar e acreditaram que sua posição diante de Deus dependia, em última análise, do que eles alcançaram “na carne”, na continuação de sua vida cristã. É possível, para nós, começarmos a vida cristã crendo em Cristo e em sua obra salvadora e, então, cairmos na armadilha de imaginar que é inteiramente nossa responsabilidade terminarmos o que ele começou. Na santificação, não menos do que na justificação, as palavras de Jesus são verdadeiras: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15.5).

O legalismo doutrinário na santificação é as vezes alimentado por pregadores apaixonados que enfatizam o ensinamento de Jesus sobre as exigências do discipulado cristão ao mesmo tempo em que se divorciam deles ou minimizam o ensino apostólico sobre a natureza da obra salvadora de Cristo pelos pecadores. O renomado teólogo reformado, Geerhardus Vos, explicou a natureza dessa forma sutil de legalismo quando escreveu:

“Prevalece ainda uma forma sutil de legalismo que roubaria do Salvador a sua coroa de glória, conquistada pela cruz, e faria dele um segundo Moisés, oferecendo-nos as pedras da lei em vez do pão da vida do Evangelho. . . [legalismo é] impotente para salvar”.

Em Colossenses 2.20–23, o apóstolo Paulo toca em mais uma forma de legalismo doutrinário que entra pela porta dos fundos da santificação. Ele escreve:

“Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade”.

Aqueles que abraçaram essa forma de legalismo doutrinário proíbem o que Deus não proibiu e ordenam o que ele não ordenou. Eles impõem a si mesmos e aos outros um padrão de santidade externa, ao qual Deus não estabeleceu em Sua Palavra. Essa é uma das formas mais predominantes e perniciosas de legalismo na igreja hoje. Muitas vezes vem na forma de proibições contra comer certos alimentos e beber álcool. Às vezes, insinua-se através de convicções pessoais sobre paternidade e educação.

Legalismo Prático

Existe outro tipo de legalismo contra o qual devemos estar atentos – o legalismo prático que pode, imperceptivelmente, assumir o controle de nossos corações. Por natureza, a aliança das obras está gravada em nossas consciências. Ainda que os crentes se tornaram novas criaturas em Cristo, eles ainda carregam consigo o velho homem – a velha natureza pecaminosa de Adão. O comportamento padrão da velha natureza é o de mentalmente se colocar novamente sob o pacto das obras. Estamos sempre em perigo de nos tornarmos legalistas práticos alimentando ou negligenciando o espírito legalista.

É totalmente possível para um homem ou uma mulher ter uma mente cheia de doutrina ortodoxa, ao mesmo tempo que tem um coração cheio de autojustiça e orgulho. Podemos estar intelectualmente comprometidos com as doutrinas da graça e ter um “discurso vazio” quanto à liberdade que Cristo comprou para os crentes, ao mesmo tempo em que negamos isso por meio de nossas palavras e ações. Um espírito legalista é fomentado pelo orgulho espiritual. Quando um crente experimenta crescimento ou força no conhecimento espiritual, ele está em perigo de começar a confiar somente em sua experiência espiritual. Quando isso acontece, os legalistas práticos começam a desprezar os outros e julgar pecaminosamente aqueles que não experimentaram o que eles experimentam. Em seu sermão “Trazendo a Arca para Sião uma segunda vez”, Jonathan Edwards explicou que havia observado a realidade do orgulho espiritual e do legalismo prático entre aqueles que haviam experimentado o reavivamento durante o “Grande Despertamento”:

“Há uma disposição excessiva nos homens, enquanto vivem, para fazer justiça ao que são em si mesmos, e uma disposição excessiva nos homens para fazer uma justiça de experiências espirituais, bem como outras coisas. . . um convertido é capaz de ser exaltado com altos pensamentos de sua própria eminência na graça”.

Talvez o mais prejudicial de todos seja o modo pelo qual um espírito legalista pode se manifestar no púlpito. Um ministro pode pregar a graça de Deus no evangelho sem experimentar essa graça em sua própria vida. Isso, por sua vez, tende a alimentar um espírito legalista entre certos membros da igreja.

A cura para o legalismo

A graça de Deus no evangelho é a única cura para o legalismo doutrinário e prático. Quando reconhecemos o legalismo doutrinário ou prático em nossas vidas, devemos fugir para o Cristo crucificado. Ao fazê-lo, novamente começaremos a crescer em nosso amor por aquele que morreu para nos curar de nossa propensão a confiar em nossas próprias obras ou realizações. Precisamos diariamente ser lembrados da graça que cobriu todos os nossos pecados, nos proveu com a justiça que vem de fora de nós mesmos e nos libertou do poder do pecado. Só então poderemos seguir com alegria a santidade. Só então amaremos a lei de Deus sem tentar guardá-la para nossa justificação diante dele. O grito de um coração libertado do legalismo é este:

“Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão”. (Gl 2. 20–21).

 

Tradução: Paulo Reiss Junior.
Revisão: Filipe Castelo Branco.

Fonte: Legalism Defined.